Crónica de Jorge C Ferreira | Balanço do Ano

Jorge C Ferreira

 

Balanço do Ano
por Jorge C Ferreira

 

O tempo sem sentido

tanta vida perdida

tanto mundo por achar

Um corpo desalmado

desossado

um desencanto

sem nome

Uma planta que não cresce

um campo de desgraça

o terreno onde as lágrimas

acabaram

cheira a morte no fim das raízes

Um tempo desencontrado

almas gastas e doridas

voos de asas por decifrar

voos cada vez mais rasos

as rasas harmonias

As valas comuns

Não conhecer nada para

além da cal

para além das botas

para além dos trapos

para além dos restos

As trincheiras

a falsa esperança

as minhocas e

os sacos de areia

o fim da linha

Um relógio parado

um corpo retalhado

as horas que não fazem sentido

o toque a sentido que não é respeitado

A sobrevivência impossível

Tocam as sirenes

as caves negras e húmidas

os lugares onde se nasce e morre

a roda da vida num estranho movimento

o último sacramento

O terror inesquecível

uma criança adorada

um sentimento calado

o choro embargado

o embargado suor

As armas e as bestas

as bestas ignóbeis

os políticos inábeis

a conversa sem sentido

todo o ouro derretido

num alguidar

de corpos ferventes

a degola dos inocentes

O mundo em agonia

a falta da luz do dia

a noite que apaga a vida

o frio que faz a ternura

fria

Minha candeia apagada

meu grito silenciado

esta dor tão marcada

esta garganta que não

se sente

a tristeza anunciada

As cicatrizes que não saram

A vida quase parada

quase perdida

quase apagada

A vontade esvaída

numa fonte seca

a seca que mata

a vontade de renascer

perecer

Os dias a passarem sem sentido

o tempo perdido

a passagem esquecida

todo o tempo achado

todo o tempo adiado

As sarjetas entupidas

o sangue

dos

corpos exangues

Tempo de sofrimento

O alimento que falta

A falta de tempo para ser

Uma pintura a desfalecer

As cores desentendidas

os corpos que voam

os seios de uma mulher

um grito embalsamado

Estilhaços de gente

o desentendimento

a empatia calada

o anúncio de outro tempo

A passagem que falta

o não chegar ao outro lado

um desacordar

a falta de fé

Pigmentos que se fixam numa tela

cores que aquecem a noite

um piano desafinado

as mãos petrificadas

de um pianista perdido

Ninguém sabe porque

ninguém

gosta da cor amarela

a gema do ovo

Arde o que não era para arder

incêndios inesperados

a bomba artesanal

o divino animal

o sacrifício

a falsa divindade

As coisas sem sentido

Todos os restos de vida

Uma montanha de destroços

a quinquilharia perfeita

o sexo que se queixa

a falta de vontade

a tristeza da verdade

Tudo o que não faz falta

a falta que a falta nos faz

um cansaço envolto na pior dor

a vontade de alguém ser calor

do outro

Vozearia

alvoroços desencontrados

estradas improvisadas

a estreita linha da vida

a vida sem caminho

O tempo que cala a alegria

o fogo que não é de

artifício

o oráculo de todo

sacrifício

O hino que não se ouve

o fim de todas as

cantatas

vidas sem alegria

sem o ardor de uma sinfonia

De novo as sirenes

uma fúria

os abrigos da penúria

a fuga impossível

o viver desencantado

Jorge C Ferreira Janeiro/2023(379)

PS: A Isaurinda afirma que nada dirá sobre isto. Que lhe faz impressão. Envia o desejo de um Feliz Ano Novo.


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Balanço do Ano”

  1. Maria Matos

    Maria Matos 7-01-2023
    Li o seu poema por mais de uma vez… Gostei como sempre!
    As tristezas da vida, o cinzento, dos dias actuais…
    Resistamos!
    Mas ouçamos também a inteligente opinião da Isaurinda.
    Abraço, poeta Amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Matos. Que bom estar aqui. O seu comentário é sempre importante. Resistir sempre. A minha gratidão. Abraço

  2. Regina Conde

    O balanço dos tempos terríveis. A tua escrita intensa, que nos chama à razão. Não devemos ignorar o desencanto. Tempo de imensa dor. Tristeza que o escritor terá sentido em cada palavra. A tua lucidez e luta por quem sofre, desde sempre a denuncias. Abraço meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Um tempo terrível, este que vivemos. Temos de ser lúcidos para lhe sobreviver. Este fim de tempo que me coube em sorte. A minha gratidão por estares aqui. Abraço

  3. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    O mundo em que vivemos é um desencontro de sentidos que não nos levam a lado nenhum. Não há empatia para o bem e nem sintonia para a paz que se procura em vão. Caprichosamente uma falta de vontade que o Mundo consente e insiste em não compreender!
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. O tanto que toda a vida lutámos pela paz. As guerras que não nos largam. Este tempo que nos aperta a vida. Resistir. Grato pela sua presença. Abraço

  4. Filomena Geraldes

    Entrei nesta crónica.
    Como tenho entrado em dezenas de outras.
    Crónicas que me enlaçam. Me cobrem de aprazíveis aventuras. Iguarias. Passados além.
    Sem desertos. Estórias de embalar. Outras de acordar com os olhos abertos. Acesas manhãs.
    Entrei nesta crónica.
    Tão tristes meus tristes olhos…
    Tristes de feridas. Sepulturas sem terra.
    Amarguras de estar longe e dar à luz nados mortos. Um frio de fazer estalar os ossos.
    Uma fome sem bocas.
    Há guerras que são como limbos. Sem céu.
    E há coros fúnebres de homens que marcham para o fim.
    A destruição é um nome que nos fere.
    Usam-se todo o tipo de utensílios de tortura.
    Todos os massacres.
    Todos os fantasmas que deambulam pelas cidade feitas em rasgos.
    Não sei a razão pela qual entrei nesta crónica. Só sei que este é o meu mundo.
    Onde se festejava, ainda no antes de ontem, a entrada de um novo ano.
    Que mundo quereis para vós? O do fogo de artifício? Das danças e dos cantares? Das praças alagadas de gente? Celebrando?
    Ou esta realidade podre e sórdida ?
    Este lembrete escrito pelas mãos de um homem que sofre e não nos deixa fazer esquecer?
    Este testemunho feroz e quase que desumano de sombras e atrocidades?
    Que mundo quereis para vós ?
    O ilusório ou o que é escrito com as cores de uma tela de sangue e gritos hediondos espalhados pela noite esventrada?
    O pintor das palavras que se afundam em cicatrizes.
    Que mundo?
    Que mundo?

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre belos os teus comentários. Sempre intensos. É gratificante para quem escreve ler o que trazes para este espaço. A minha gratidão. Abraço

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que beleza de poesia, mesmo na violência que o tema encerra. A verdade tão bem dita e sentida pelo poeta. Que descreve maravilhosamente, o cenário de guerra, com alma e verdade. Gostei tanto, do que tão humanamente escreveu, querido poeta.
    Admiração e estima, no meu abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza, miinha querida Amiga. Estamos a viver a violência pura e dura. A falta de ética. A bestialidade da guerra. Temos de saber sobreviver. Grato pela sua presença. Abraço grande

  6. Eulália Coutinho Pereira

    Poema belo demais, para o desencanto em que o mundo se está a transformar. Li e reli. Em cada palavra a verdade. Intenso. A vida a fugir. A humanidade manchada poractos hediondos.
    Desigualdade, injustiça, fome,crime.
    O mundo assiste.à destruição. Os poderosos transformam -se em monstros e a vida continua.
    Obrigada, Amigo, por este Poema único. Obrigada pelo despertar de consciências.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Disse tudo. O mundo a desfazer-se. A guerra. A podridão dos poderisos. A falta de ética. A vergonha que nos envergonha. Os sem abrigo. Gratidão imensa por estar aqui e dizer o que diz. Abraço grande

  7. Isabel Soares

    Uma crónica poema. Um escrito belo sobre a fealdade de um mundo que não se alterou no ano passado.
    Um dizer o eu numa realidade hostil. Realidade pessoal emaranhada com aquela em que se encontra inserido.
    Palavras bonitas a desvendar um sofrimento singular e a compaixão. Num universo de 365 dias passados. Mas também o passado e a descrença no futuro.A impotência. Por mais que a voz fale, a impotência.
    A esperança e desesperança num “caminho” pessoal que pesa. Que sangra. “Corpo” marcado por cicatrizes que abriram e urgentemente terão de ser suturadas.
    A tristeza e desilusão por um caminho imaginado outro no exterior e em si.
    Um escrito grito de angústia. Angústias. Por si. Pelo rumo da humanidade. A sua dor e as dores dos outros. O seu sem sentido. Indagá-lo é , como transparece no poeta, ser confrontado com a sua ausência. E esta é um “conhecimento “/”sentimento” brutal. O abismo em nós. Um abismo preenchido de ” demónios”internos e universais.
    A tristeza patente numa leitura visceral sobre a não aparência da vida-eu e da vida-outros entrelaçadas por uma (in)humanidade comum.
    ,

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sempre importantes os textos com que faz o favor de comentar as minhas crónicas. É sempre gratificante ler o que escreve. A minha imensa gratidão. Abraço

  8. Cristina Ferreira

    Muito intenso.
    Abraço, querido escritor.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Sempre bom ter-te aqui. Grato. Abraço

  9. José Luís Outono

    Felizmente o traço da tua memória regista gritos destes momentos actuais, sem parágrafos para sorrir.
    Perdoa-me amigo que muito estimo e admiro, releio-te e num repente sinto o pulsar ímpar de uma verdade anual sem cores, ou palavras que nos façam correr nos sorrisos sonhados.
    Não te perdoarei um abraço sentido de um ESCRITOR, que hoje me fez reflectir em quantas verdades sinceras mas doridas.
    Triste mundo, onde ainda acordamos e somos incapazes de apagar os fogos de um demolir assassino.
    Razão tem Isaurinda ao calar-se , morder os lábios e gritar internamente – PORQUÊ?
    Neste caminhar de um calendário desconexo … foi bom sentir o teu pulso ecoando verdades … apesar de estarem tão longínquas das reais verdades!
    Que o teu grito possa suavizar cada manhã nascente.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Que tempo este o que nos reservaram para este nosso tempo de vida. Meu Poeta e Amigo, quantas coisas já vencemos, contra quantas guerras lutámos. Resistir é a palavra. A minha gratidão. Abraço

  10. Branca Maria Ruas

    Os chocantes contrastes.
    A abundância e a fome.
    Os presentes e os destroços.
    A ostentação e o puder da pobreza escondida.
    Tanto e tão pouco.
    A guerra e a Paz!
    Nada se pode acrescentar ao teu texto tão lúcido, sentido e isento de hipocrisia.
    Agradeço e retribuo à Isaurinda.
    Para ti, um grande abraço com o desejo de Paz, Luz e Liberdade.
    Muita saúde!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria. As desigualdades, a falta de ética. A desgraça e a opulência. As guerras estúpidas e sem sentido. O empobrecimento da vida. Grato por me acompanhares. Um grande abraço

  11. Fernanda Luís

    Perfeito balanço.
    Mais palavras para acrescentar ou opinar o quê?
    Por isso, me calo, desejando
    Feliz Ano Novo

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Sempre grato pela sua presença neste nosso espaço. Temos de resistir à podridão deste tempo. Um abraço

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